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Vaccariano - Memorial do Campo e do Mato “do Sul”

*Zé Pádua

Permita que eu me apresente. Eu sou o Vaccariano. Testemunha ocular e braçal da história desse Campo e Mato do Sul. Meu nome é, pois, sou dos Campos de Vacaria, lugar primitivo da ocupação humana no agora então estado de Mato Grosso do Sul, que já foi Capitania e Província do Brasil. Da Vacaria sai para correr esse mundão cabeludo, tangendo gado, fecundando terras, na garupa dos largos dias de calor, no sopé das madrugadas frias. Vou contar aqui um pouco daquilo que vi, ouvi, senti. Releio o que a minha memória guardou da história, principiando do começo.

Antes do meu começo, tem o começo de tudo. Bem dizer, ninguém sabe ao certo quando é que tudo começou, nem se existe um começo ou um fim. Pois bem, a nossa história começa quando o nosso Arquiteto do Universo terminou de fazer esse lugar. Feita a Serra de Maracaju, que corta o estado de norte a sul e o divide em duas bacias. Feito o rio Paraná, que beiradeia o flanco leste e recebe todo o jorro de água na direção centro-leste. Feito o rio Paraguai, vasto e caudaloso nas baixadas, onde desemboca água e sedimentos da direção centro-oeste, na escavada planície do Pantanal. Feito o solo, ora argila, ora areia, feitas as matas brutas, os cerradões, as veredas, os pequenos e médios rios...Aí Deus colocou os bichos de água, de voo e de chão.

Depois, surgiu o bicho homem. Os primeiros a pisar aqui foram os indígenas. Vagavam por aqui diversas tribos deles, algumas mansas, outras guerreiras. Desde então, já disputavam território e comida entre si. A partir do ano de 1.500 da nossa era, começam a chegar outros povos, uns vindos diretamente do continente europeu, outros filhos da miscigenação desses europeus com indígenas, com africanos, e também mestiços de índios do litoral e africanos. Chamados de brancos, mestiços, caboclos, mamelucos e cafuzos. Eu tenho sangue de todos esses aí, com uma pitada de terra, erva-mate, charque e farinha.

Pois então, o encontro dessa gente nem sempre foi de muita paz, teve muita peleia. Bem ou mal, está no espírito do bicho homem desbravar, conquistar território e defender seu grupo com unhas e dentes, principalmente em prol de comida e moradia. Aqui não foi diferente. Teve sangue e lágrimas derramados nesses campos e matos. Entre os anos de 1.500 e 1.800 o que se tem notícia é que a intenção de quem aqui chegou foi de desbravar e ocupar. O ambiente exigia força naquele momento. Força das tribos defendendo território. Força dos Bandeirantes que cruzaram rios e matas, abrindo rotas e caminhos. Força dos Militares, com a tutela de garantir a soberania do território, erguendo fortes e colônias. Força da disciplina da catequese dos Jesuítas, apaziguando tribos indígenas, criando povoações e disseminando a agricultura e a pecuária. Aos poucos o território ia sendo descoberto e ocupado, mas foi depois dessas idas e vindas que começaram a chegar uma leva de gente que pretendia de fato ficar por aqui, levantar roça e firmamento.

No início dos anos de 1.800, com o Brasil já país independente, principia a chegada, ao sul da província de Mato Grosso, de famílias pioneiras, vindas principalmente de Minas Gerais e da baixada cuiabana. Os mineiros entraram por Santana de Paranaíba (hoje município de Paranaíba-MS), ficando alguns por essa região. Outros se deslocaram rumo ao sul em busca da famosa região da Vacaria, meu berço. A região abrangia porções do que é hoje os municípios de Campo Grande, Nova Alvorada, Rio Brilhante, Sidrolândia e Maracaju. Contam os antigos que o nome “Vacaria” advém dos rebanhos de vacas alçadas que existiam nessa região, resquícios dos rebanhos das povoações jesuíticas. Corria a notícia de uma abundância desses rebanhos soltos nos campos, isso instigou os pioneiros a buscar a localidade pois com esse gado poderiam começar seus projetos de vida por lá, afinal a demanda por alimento no Brasil e no mundo crescia cada vez mais.

As famílias mato-grossenses da baixada cuiabana, principalmente das localidades de Cáceres, Poconé e Livramento, desceram o rio Paraguai sentido sul. Nos arredores do que é hoje Corumbá e a vila de Albuquerque, adentraram a planície pantaneira. Ergueram pouso onde se entendeu ser local mais alto, firme. E assim chamou uma das primeiras fazendas: Firme. Lá se escapava das vazantes e corixos que entrecortam o Pantanal como veias irrigantes. Assim como na Vacaria, no Pantanal também havia gado alçado, fruto das povoações jesuíticas de outrora e de incursões humanas passadas. Essas famílias começaram sua saga arrebanhando e amansando essas rezes campo a fora. Não foi nada fácil, o Pantanal é misterioso, vez é cheia onde tudo vira mar, vez é seca onde poeira sobe igual no deserto. Fato é que o boi e homem pantaneiros, após 300 anos de convívio, já são parte da fauna dessa vastidão.

Nesse meio tempo, entre a chegada e fixação dessas famílias, o Brasil foi surpreendido por uma ofensiva dos nossos vizinhos paraguaios em busca de territórios. Por mais de 4 anos o povo que aqui iniciava sua empreitada, sofreu com uma guerra campal. Tropas brasileiras vindas de todos os lados, por terra e rios, lutaram e conseguiram expulsar as tropas paraguaias, garantindo de vez esse quinhão aos já radicados mato-grossenses, brasileiros. Ao final da guerra, houve mais entrada de mineiros e mato-grossenses da baixada cuiabana, além de gaúchos do Rio Grande. Mesmo derrotados, muitos paraguaios que já conviviam com os brasileiros na fronteira, vieram para cá também, em busca de trabalho e vida melhor. Assim se forjava a nossa cultura campeira do Sul de Mato Grosso, um misto de costumes e práticas mineiras, pantaneiras, gaúchas e paraguaias. Da roça de milho e mandioca, do charque, do laço comprido, do mate, da bombacha, do arreio basto, da polca, do brio.

Aos trancos e barrancos, com muita bravura, esses pioneiros formaram suas querências, ajudaram a erguer povoações e cidades. Na lida do dia a dia, no ranger do arreio, no chiado da cuia, no sovar do laço, uma cultura ia se formando. Muitos já eram brasileiros mestiços, e aqui também entre si se miscigenaram. Bem ou mal, o bicho homem aqui triunfou, se moldou as durezas da natureza implacável, soube lidar com o que as estações do ano lhe ofereciam. Sim, foram tempos brutos, sangue, suor e lágrimas foram derramados. Irrigaram esses campos e matas, honrando os antepassados, fruto do trabalho duro, da árdua labuta ao pé do eito.

É fruto desse eito tudo o que temos aqui no nosso agora Mato Grosso do Sul. No compasso da enxada que fendia a terra a ser plantada, ruas e avenidas das novas cidades eram criadas, trilhos rasgavam o território leste-oeste, estradas antes boiadeiras, viraram superfície para caminhões. O Brasil crescia, se modernizava. Nesse ritmo novos rostos aqui chegaram. Paulistas e paranaenses iam se misturando, ensinando e aprendendo com os mateiros de cá. Também vieram estrangeiros: árabes, japoneses, italianos e portugueses. O caldo ia engrossando, sem perder o sabor original. A colher e o tempero trago comigo, sem deixar faltar terra, erva-mate, charque e farinha.

Amigo leitor. Obrigado pela companhia até aqui. Nesses singelos parágrafos tentei resumir a você um pouco da nossa história campeira. Lembre-se, sou apenas uma testemunha ocular e braçal, os grandes historiadores deixaram preciosas obras relatando com detalhe nossa formação. Sendo assim, me despeço agradecido. É sempre uma honra falar desse chão que amo tanto. Trago no ombro meu velho pala caminhador e a largura dos dias. Na cabeça o chapéu de nove sóis e a têmpera das noites. Na garupa um emaranhado de contos, recônditos. Não sou atlas, apenas linha. Não escrevo fatos, memória minha. Do mato eu vim, no campo eu sou. Desnorte é o Sul. Palavra é chama. Memória de algum lugar sem fim. Composição de terra, árvore e capim.

Vaccariano é um personagem criado pelo autor que fala em primeira pessoa sobre a História de Mato Grosso do Sul. Faz parte de um projeto cultural chamado Vaccariano- Memorial do Campo e do Mato (@vaccariano; www.vaccariano.com).

nullMédico Veterinário com 10 anos de formação, teve trabalhos em fazendas, indústria de nutrição animal e consultorias agropecuárias pelo Brasil, Paraguai e Bolívia. Hoje atua como Gerente Técnico no Sistema Famasul no Mato Grosso do Sul.